Anti-intelectualismo e infantilização
Sobre a reação do público ao Tik Tok dos alunos de cinema da ECA-USP
Porque estava em horário de trabalho e tenho medo crônico de expor minha opinião em redes sociais públicas, decidi reunir aqui um pouco do que penso sobre a polêmica criada em torno do Tik Tok em que alunos de cinema da ECA-USP falam os filmes que amam e odeiam. Como pessoas que estudaram e passaram em um dos cursos mais concorridos da mais renomada universidade do país, é apenas natural que os alunos falem ali de filmes apreciados pela cinefilia, em sua maioria filmes “de arte” produzidos em diferentes décadas, mais ou menos distantes desta.
A reação no Twitter, no entanto, foi inesperada. Enquanto vídeos similares feitos em universidades privadas (em que muitos alunos citaram como favoritos filmes que a maior parte do público – Gen Z e Millennials – assistiram) mal repercutiram, o vídeo da USP ultrapassou 24 mil curtidas e 11 mil respostas. A maioria destas diziam que os jovens “queriam aparecer” ou que davam “opiniões elitistas”, defendendo que os filmes preferidos são os filmes do coração, que causam sentimentos, não os considerados como tal por intelectuais e críticos.
O podcast “Diário de Bordo” do Gshow, apresentado por Jeska Grecco e Leandro Neko, chegou a fazer um episódio quase inteiramente dedicado a destilar ódio em relação às opiniões pessoais dos estudantes. No início da discussão, o apresentador – que trabalha com entretenimento – menospreza a faculdade de cinema e a predileção dos alunos. Grecco defende então que seu filme preferido é Shrek 2 e que o vídeo não passa de uma vontade dos alunos de “provar [algo] para si e para os outros”. Neko passa a dizer, em tom de chacota, o nome do diretor iraniano Abbas Kiarostami e do sul-coreano Hong Sang-Soo, o que foi interpretado por internautas como uma forma de preconceito étnico-racial.
Anti-intelectualismo
O ódio que resulta de estudantes falando de forma passional sobre a carreira que escolheram e os filmes que mais gostam soa como nada mais nada menos que anti-intelectualismo, algo que parece ter tomado conta dos espaços de discussão sobre arte e cultura nos últimos meses. Não é mais possível falar publicamente que gosta de obras do cinema ou da literatura não-mainstream sem ser julgado como chato. É de conhecimento geral que o último governo foi responsável por uma onda de anti-intelectualismo e anti-cientificismo na sociedade brasileira, mas o que a esquerda se recusa a perceber é que a tendência chegou no seu próprio campo, mas com outra roupagem ao restringir-se à tão subjetiva área das humanidades.
Não é radical citar o texto de Susan Sontag “Fascinating Fascism” para falar da forma como o anti-intelectualismo se difunde na nossa geração:
“Uma das principais acusações contra os judeus no nazismo da Alemanha foi a de que eles eram urbanos, intelectuais, possuidores de um “espírito crítico” destrutivo e corruptor. (A fogueira de livros de Maio, 1933, foi lançada com o bradar de Goebbels: ‘A era do extremo intelectualismo judeu acaba agora e o sucesso da revolução alemã deu novamente o direito de passagem ao espírito alemão’. E quando Goebbels oficialmente proibiu a crítica de arte em novembro de 1936, foi por ter ‘traços típicos do caráter judeu’: colocando a cabeça acima do coração, o indivíduo acima da comunidade, o intelecto acima dos sentimentos). Agora é a própria ‘civilização’ que é o corruptor.”
A quem serve criticar tão veementemente estudantes universitários pelas escolhas culturais que eles fazem? Alguns podem responder que a predileção por filmes estrangeiros e antigos é uma forma de elitismo que, portanto, afeta negativamente a sociedade como um todo. Mas, como afirmou Sontag em uma palestra proferida em 1992, muito do que hoje é chamado de “elitista” não passa de uma máscara para o anti-intelectualismo.
Como pode um filme ser elitista? Um filme não pode ser seletivo quanto a seu público; também não pode insistir nas condições sob as quais é recebido. Em um texto sobre literatura e consumismo, a escritora neozelandesa Eleanor Catton percebe que as principais objeções quando pessoas não gostam de determinada obra literária resumem-se a (1) o livro é confuso; (2) o livro é chato; e (3) o livro é mal escrito. “Confuso”, “chato” e “ruim” são reclamações pertinentes, mas não são críticas. Elas são três formas de dizer que a obra falhou em evocar uma resposta do espectador. Longe de descrever e criticar um encontro literário – que é o trabalho da crítica – tais ‘resenhas’ apenas deixam claro que um encontro literário nunca aconteceu. Esse tipo de resposta ocorre quando a obra é avaliada como um produto, que não teve o desempenho anunciado e é, portanto, considerado deficiente.
“O elitismo é um padrão de discernimento que busca excluir tudo (ou todos) percebido como estando aquém desse padrão. A crítica pode ser elitista; a censura pode ser elitista; programas educacionais podem ser elitistas; a advocacia e a propaganda podem ser elitistas; prêmios literários podem ser elitistas; comunidades e clubes podem ser elitistas; livrarias e sites podem ser elitistas.
Mas a literatura simplesmente não pode ser. Um livro não pode ser seletivo quanto a seus leitores; nem pode insistir nas condições sob as quais é lido ou recebido. O grau de sucesso de um livro depende apenas do grau em que ele é amado. Tudo o que uma crítica desse tipo significa é uma expressão de lealdade à marca, uma afirmação de preferência pessoal por uma marca de literatura em detrimento de outra. É tão irrelevante quanto dar quatro estrelas para sua mãe, três estrelas para sua infância ou duas estrelas para seu gato.”
Infantilização
Outra coisa que chama atenção é a quantidade de adultos que, como a apresentadora do podcast citado, têm como filme preferido Shrek 2. Tomando como pressuposto que essas pessoas não o digam apenas com o intuito de “irritar cinéfilo” ou procurar o exato oposto do “filme iraniano de 1942” que eles tanto detestam, é interessante – se não preocupante – ver como uma geração inteira tem orgulho de ter o mesmo repertório e predileção cultural que uma criança de sete anos. Harry Potter, Shrek, John Green e Velozes e Furiosos foram todos ótimos quando éramos crianças e queríamos nos divertir nas tardes de dia de semana em frente à televisão. Mas, como adultos, qual o sentido de considerar essas obras como cânones da arte cinematográfica ou literária?
O artigo de James Greig para Dazed “Everyone needs to grow up” resume a questão da infantilização das gerações de Millennials e Gen Z:
“Somos uma geração de bebês adultos. Você pode ver isso na ideia amplamente divulgada – e em grande parte falsa – de que o cérebro humano não é desenvolvido até os 25 anos de idade, o que significa que qualquer pessoa mais jovem ainda é essencialmente uma criança. Está lá na hegemonia dos filmes de super-heróis e na popularidade intergeracional de YA, cujos fãs insistem que a literatura adulta é sempre apenas sobre professores universitários deprimidos tendo casos. Você pode ver isso nos Disney adults; a ascensão da fofura como categoria estética dominante; o ressurgimento dos bichos de pelúcia; pessoas que se identificam como Hufflepuffs na biografia do Hinge. Às vezes, trata-se menos de fingir ser uma criança e mais de voltar a uma adolescência perdida: narrar sua vida como se fosse um romance de John Green ou um episódio de Euphoria; chegando aos 30 e ainda se considerando “precoce”.
O autor defende que, ao contrário de nossos pais, nós fomos negados a idade adulta ao não termos adquirido capacidade financeira para comprar uma casa ou formar uma família com 20 e poucos anos. Porém, mesmo que a economia imponha isso sobre nós, podemos escolher afirmar nossa dignidade e recusarmos ser “adultos bebês”, indefesos e dependentes, pois é isso que o capitalismo quer. As elites capitalistas e grandes companhias preferem que adultos se auto-infantilizem, pois as crianças são o consumidor perfeito: "sugestionáveis, impulsivas, movidas por um desejo insaciável e reabastecível de prazer”.
Acho que o texto prescinde de conclusão, mas, precisando de uma, concluo: aos que acham estarem certos ao defender a unhas e dentes que o correto é gostar de filmes infantis e desprezar qualquer expressão de intelectualismo e amor à arte, cuidado! É você quem corre perigo no mundo real, onde o capitalismo se aproveita daqueles que excluem o pensamento crítico de seus vocabulários em nome da nostalgia.
Ótimo texto. Acrescento que, por vezes, esse movimento parece ser uma auto-defesa do ego ferido. Confrontado com algo que não entende, o indivíduo, em vez de aceitar que talvez haja algo de significativo ali, trata esse objeto com desdém: o que eu não entendo é elitista, portanto lixo; o que eu não consigo pronunciar merece chacota, etc. E aí há também uma tentativa de racionalizar uma inveja intelectual: se eu não entendi, ninguém entendeu, portanto os que dizem entender são fingidores que precisam ser desmascarados.
Ótima reflexão! No meio acadêmico, é comum o problema contrário, que é o intelectualismo (de professores e alunos oriundos das elites culturais), que promove exclusão principalmente contra estudantes vindos das classes mais populares, que nunca tiveram o mesmo nível de esacolarizaão e acesso - consequentemente, domínio - dos bens culturais. Mas, fora do meio acadêmico, o anti-intelectualismo fascista domina. Estamos entre a frigideira e o fogo.