Em defesa de Ottessa Moshfegh ou Pelo entendimento antes da problematização
Sobre Meu ano de descanso e relaxamento, Madame Bovary e o estado atual da crítica cultural
Quando comecei a ler Meu ano de descanso e relaxamento, da americana Ottessa Moshfegh, não esperava muito. Tendo acabado de ler Lapvona, achei difícil de entender como o estilo de épico depravado que marca o conto medieval poderia se aplicar à premissa do livro anterior: uma mulher que decide dormir por um ano com auxílio de medicamentos e então renascer livre dos tormentos da vida anterior. A atenção que o livro ganhou de redes sociais como Tik Tok e Tumblr nos últimos meses – colocado por jovens mulheres como exemplar da estética “sad girl” em vídeos que o resumem a imagens de pílulas, vinho derramado e garotas brancas e magras atormentadas pelo privilégio – não fez nada além de diminuir meu interesse pela obra. Mas, tendo adorado o último livro da autora, decidi dar uma chance.
Em um primeiro olhar, a personagem sem nome que narra Meu ano de descanso e relaxamento é o arquétipo de garota branca e rica da cidade grande que vemos em séries da década de 1990, como Sex and the City. Formada em história da arte pela Universidade de Columbia, ela é loira, alta e convencionalmente atraente. Trabalha em uma galeria de arte, sai com um cara mais velho e detesta os hipsters que “anotam seus pensamentos brilhantes em um caderninho Moleskine e se masturbam para Chloë Sevigny”.
Até aí, não é difícil se identificar com essa personagem que poderia ser a gêmea do mal de Carrie Bradshaw. Com o virar das páginas, no entanto, a lassidão da personagem começa a se transformar em maldade, expressa sobretudo em sua relação com sua melhor amiga, Reeva, colocada pela narradora como uma bulímica pedante. Mas a principal crítica que é reproduzida na internet está no fato de que a personagem reproduz falas de tom machista, racista e gordofóbico. No entanto, não é difícil lembrar no meio de todo o absurdo da obra, que ela é exatamente uma sátira da sociedade americana.
Em perfil da revista New Yorker, Moshfegh define: “minha escrita permite que as pessoas lutem contra sua própria depravação, mas ao mesmo tempo é muito refinada… é como ver Kate Moss cagar”. Como fazia Charles Bukowski nos Estados Unidos da década de 1960 – sem o machismo abominável que imediatamente me impede de ler sua obra com alguma compaixão – Moshfegh olha para aqueles que estão à sua volta para traduzir tudo o que elas tentam esconder em palavras.
No podcast da livraria Shakespeare and Company, Moshfegh diz:
“Eu acho que qualquer um que não seja eu é estranho. Eu sempre fico surpresa com quem as pessoas realmente são, algo que não se vê até conhecê-las de forma extremamente íntima. O desempenho da personalidade é tão profundamente importante em como pensamos nas pessoas, nós apenas as vemos por quem elas aparentam ser, e não por quem realmente são. Como escritora, é crucial para mim pensar sobre quem as pessoas realmente são, o que é sempre algo muito estranho.”
Igualmente, em entrevista conduzida para o canal CBS Camera Three em 1969, Jack Kroll questiona as convidadas Agnès Varda e Susan Sontag sobre o incômodo que os personagens de Lions Love (1969) causam nos espectadores: “Isso [eles] incomoda muitas pessoas, que questionam – Por que deveríamos nos interessar por essas pessoas? Qual a significância delas e de suas experiências para nós?” Sontag responde:
“Eu discordo completamente, porque umas das coisas que mais gosto do filme de Agnès é que ele é um dos únicos filmes que vi em muito tempo em que reconheço pessoas de verdade. Longe de serem grotescos, o que é interessante nesse filme é que realmente existem muitas pessoas assim e que o filme as mostra. A relação da arte com a vida real é muito complicada e ambígua. Nos filmes de Hollywood não se vê pessoas reais, sejam elas convencionais ou marginais, mas ideias de como acham que essas pessoas deveriam ser ou de como elas devem ser representadas.”
A personagem criada por Moshfegh para narrar Meu ano de descanso e relaxamento pode não ser a representação de uma pessoa absolutamente real, mas ela canaliza a forma de pensar de grande parte das pessoas privilegiadas que no entanto se veem deprimidas por um sistema socioeconômico que não condiz com sua natureza, buscando escapismo em drogas – legais ou ilegais – e passando por cima de todos a sua volta egoistamente.
O que faz do livro quase insuportável para alguns é a forma com que a personagem é colocada como uma pessoa genuinamente cruel, sem ressalvas ou piedade por parte da autora que a coloca no papel. Ao contrário de outras personagens femininas antipáticas que dividiram opiniões no cinema e na televisão nos últimos anos – como Fleabag e Ladybird – a Narradora não vem de dentro da autora, que nos exemplos citados colocam muito de si nas personagens, que se tornam antipáticas na medida em que refletem traços negativos inerentes a nós.
Ou seja, quando falamos de nós mesmos, é natural que não queiramos nos abrir inteiramente para o público desconhecido, mas quando tenta-se expor um “outro sem nome” se está livre para fazê-lo. Isso possibilita que a obra de Moshfegh denuncie a imoralidade da sociedade como um todo, em nossos hábitos e pensamentos mais sombrios e individuais.
Logo que acabei o livro, assisti à adaptação que Claude Chabrol fez de Madame Bovary, interpretada por Isabelle Huppert. Em 1857, Gustave Flaubert escrevia uma mulher cuja realidade entrava em conflito com seus sonhos, o que fez dela uma mulher infiel e egoísta até o ponto de seu suicídio. No filme, Huppert representa a personagem de modo a amplificar o desdém que a personagem sentia em relação àqueles que conviviam com ela, em especial ao seu marido, que tentava sinceramente ajudá-la em troca de olhares de reprovação.
Apesar de haver espaço, no livro, para uma leitura “feminista” da personagem – uma mulher que, presa ao casamento e destinada a atividades femininas, enlouquece – no filme, a margem é menor, o que transforma Emma Bovary em uma personagem muito similar à Narradora de Moshfegh. Incapazes de lidar com a infelicidade do mundo real, ambas buscam refúgio em atividades que vão contra a moral burguesa – dormir, trair e comprar. Como parte desse sistema que as personagens desafiam interessadamente, somos tomados por desgosto, quase incapazes de acompanhar a trajetória até o final trágico que acomete as duas.
Enquanto totalmente opostos, os finais se espelham: Emma Bovary se mata, e a Narradora vê Reeva – sua melhor amiga irritante – e Trevor – o ex pela qual é apaixonada – morrerem no ataque às Torres Gêmeas. Moshfegh define que “arte é o que fixa a cultura, a cada momento”. Assim como Madame Bovary, Meu ano de descanso e relaxamento pode não ser para todo tipo de leitor, mas define a cultura ocidental em sua atualidade cada vez mais efêmera. Portanto, problematizar temas que o livro aborda sem pensar duas vezes sobre a forma com a qual aquilo é colocado e descartar ou cancelar a obra seria um desserviço.
Nos últimos meses, caí em uma sequência sem fim de Tik Toks sobre literatura e me deparei com pessoas determinando que não se deveria ler autoras como Patti Smith, Joan Didion, Ottessa Moshfegh e Clarice Lispector por conta de falas que, tiradas de contexto e sem fonte, seriam problemáticas. Esse foi também o caso de Meu ano de descanso e relaxamento. Em artigo da revista New Yorker, Nathan Heller observa que, em salas de aula hoje, o gesto inicial de crítica pode parecer ter mais prestígio do que a longa busca pela compreensão:
“Um professor e crítico de literatura em Harvard — não velho, nem branco, nem homem — notou que se tornara publicamente mais recompensador para os alunos criticar algo como ‘problemático’ do que lidar com quais poderiam ser os problemas; eles pareciam ter descoberto que apenas nomear as preocupações tem mais valor, no mercado cultural de hoje, do que a curiosidade sobre o que estava por trás delas.”
Sem a capacidade de entender antes de criticar e investigar antes de generalizar, a crítica – e a arte – perdem todo o valor e potencial.
"Problemático" é uma palavra tão vazia, né. Eu lembro muito bem do dia que o meu castelinho de vidro quebrou e eu percebi que a arte não serve para ficar dando liçãozinha de moral, foi assistindo "Trama Fantasma" do PTA. Até hoje tem um lugar especial no coração por causa disso.