Peço silêncio
Sobre Petzold, Chantal Akerman e Bresson (e uma pequena homenagem a Rita Lee)
Há algumas semanas assisti Undine de Christian Petzold no cinema. Já havia visto Transit do diretor há alguns anos, mas saí da sala completamente surpresa pela expressividade do silêncio que ressona da forma de Petzold. Fiquei tentando decifrar o que diferencia ele de outros grandes (e médios) diretores contemporâneos e encontrei a resposta em sua falta.
Com seu frenesi eletrônico e a mercantilização de tudo que gira em torno de nossas vidas, economias ocidentais rapidamente baniram o silêncio do dia a dia. Transformada em indústria, a arte cinematográfica entra na mesma lógica: o silêncio foi abolido não apenas das faixas de áudio mas também das imagens que correm pelas telas das grandes redes de cinema.
Em 1969, Susan Sontag já pensava no fenômeno:
“The art of our time is noisy with appeals for silence. A coquettish, even cheerful nihilism. One recognizes the imperative of silence, but goes on speaking anyway. Discovering that one has nothing to say, one seeks a way to say that.” (The Aesthetics of Silence, em Styles of Radical Will)
A arte contemporânea tem como hábito o propósito de incomodar, provocar ou frustrar seu público. Após décadas de tentativas de quebrar paradigmas no mundo da arte, a subversão pelo incômodo se torna o mainstream, não há nada de novo em tornar desconfortável pela provocação do desagradável. Comprometido com a ideia de que o poder da arte ainda reside em seu poder de negar a realidade, “a arma final do artista é aproximar-se cada vez mais do silêncio” (Sontag).
A obra de Chantal Akerman soa como o exemplo perfeito. Seus filmes são alguns dos principais exemplares quando se pensa no silêncio no cinema – não apenas literal, mas no sentido da ausência formal e textual. Seus filmes não falam, mas mostram as diferentes realidades da diretora: Jeanne Dielman e Je, Tu, Il, Elle constroem o drama da mulher presa em um mundo de solidão com base na ausência. Quase não há música e texto, mas as imagens e seus cortes e planos também não falam nada pelo movimento, mas pela falta: com o objetivo de dizer as palavras que jamais poderiam ser pronunciadas sobre seus sujeitos – da vida feminina à experiência de sua mãe com o holocausto – Akerman permanece em silêncio.
É preciso entender o silêncio, no entanto, como relacional, tal qual definido pelos experimentos de John Cage. Sontag ilustra a ideia com a cena do clássico Alice Através do Espelho, de Lewis Carroll: Alice encontra uma loja “cheia de todo tipo de coisas curiosas” e, no entanto, sempre que ela olha atentamente para qualquer prateleira, ela parece “bastante vazia, embora as outras ao redor estejam lotadas o máximo que podem”. Enquanto objetivo do autor, o silêncio não pode jamais ser a experiência do público, pois silêncio não existe em sentido literal e qualquer experiência vivida por uma audiência consciente requer invariavelmente uma resposta. O silêncio permanece sendo uma forma de comunicação, um elemento do diálogo produzido entre uma obra e seu público.
Herdeiro dos impulsos artísticos do cinema mudo, Robert Bresson se assemelha a Chantal Akerman na sua escolha formal silenciosa, como enunciou Jean Cocteau:
“Bresson se expressa cinematograficamente como um poeta através de sua pena. Vasto é o obstáculo entre o seu silêncio e todo um mundo onde se passa por hesitação e mania.”
Em imagens sérias de sonhos e pesadelos na ordinariedade do mundo real, os filmes de Bresson são fotografados com o olhar do des-espero. Seus personagens, similarmente aos de Franz Kafka, buscam à exaustão uma resposta para o sofrimento terreno e recebem do universo nada além de silêncio. Frase famosa do cineasta, a ideia de que “o cinema sonoro inventou o silêncio” é desafiada por Bresson, cujas imagens de corpos perdidos em um mundo sem esperança expressam tanto quanto as máximas enunciadas por seus personagens – que seguem a mesma lógica, pois mesmo que a palavra seja o meio do artista, a linguagem tem a capacidade de emudecer.
A qualidade do silêncio na era do cinema de Tik Tok está em devolver a atenção a um público contaminado pela distração.
“Talvez a qualidade da atenção que se dá a algo seja melhor quanto menos se oferece. Munido de arte empobrecida, expurgada pelo silêncio, transcende-se a frustrante seletividade da atenção, que inevitavelmente distorce a experiência. Idealmente, deve-se ser capaz de prestar atenção em tudo.
Petzold é um dos poucos diretores que segue a tradição de valorizar o que resta mediante o espaço negativo. Em entrevista a Olaf Karnik, o diretor afirma: “Normalmente, é assim: você está sentado no cinema e de alguma forma tem música tocando o tempo todo, um tipo de som ambiente, como trânsito em uma cidade. Você para de registrá-los depois de algum tempo, isso continua no decorrer do filme. Eu não estava feliz com isso. Eu queria que a música fosse ouvida.”
A ideia se aplica a toda a estrutura do filme: Petzold empresta a mitologia de Ondina e o transporta para a alemanha contemporânea sem qualquer explicação sobre os personagens acometidos pelo fantástico naquele contexto sóbrio, transformado em mágica pelos pequenos mitos da narrativa (o bagre, o mergulhador do aquário, o absurdo das falas da personagem de Paula Beer e seu nome gravado nas ruínas submersas). Em sua trivialidade, Undine é transformado em uma épica do absurdo, conto de amor assombrado pela tensão silenciosa do estar-submerso, quebrada por uma trilha sonora que expressa em sua beleza abrupta o voltar à superfície.
O nome do ensaio foi tirado de um poema de Pablo Neruda que conheci entrevistando Evandro Teixeira sobre sua exposição no IMS Paulista. Com ele faço minha homenagem singela à estrela que o mundo perdeu hoje. Se hoje amo o Brasil, suas imagens e suas canções, é porque um dia meu pai falou para eu ir ouvir Os Mutantes e me apaixonei por Rita Lee.
“Vivi tanto que um dia
terão de por força me esquecer,
apagando-me do quadro-negro:
meu coração foi interminável.
Porém porque peço silêncio
não creiam que vou morrer:
passa comigo o contrário:
sucede que vou viver.
Sucede que sou e que sigo.
Sucede que tanto vivi
que quero viver outro tanto.
Nunca me senti tão sonoro,
nunca tive tantos beijos.”
– Peço silêncio, Pablo Neruda
Belíssimo texto….diria perfeito!
Beijos