Poética do catálogo
Sobre a nossa obsessão por listas (e algumas das minhas listas de fim de ano)
“A lista é a origem da cultura.” A frase de Umberto Eco pode não ser completamente verdadeira, mas parece relevante durante as festividades de fim de ano, quando todas as revistas e sites de cultura do mundo decidem listar os melhores filmes, livros e álbuns lançados ao decorrer dos últimos meses. Nós sentimos a necessidade de fazer listas para perceber e dar valor às coisas que consumimos enquanto arte. Listar garante a existência, diria Susan Sontag nos seus diários. É como se sem aquela lista de palavras, que convencionamos colocar uma embaixo da outra, os melhores filmes e livros consumidos no último ano desaparecerão.
A compulsão por listas é de uma ansiedade que condiz com o momento atual da crítica cultural. Ninguém quer ler grandes parágrafos e reportagens elaboradas sobre os lançamentos do ano. Queremos saber o que há de melhor para correr para o carrinho de compras da Amazon e clicar “comprar” – ou baixar o torrent e dar o play. Não é à toa que a maioria dos jornais online diários já substituíram o lide por uma pequena lista que resume os tópicos da reportagem. Em um ambiente em que a atenção do leitor é roubada a cada instante, organizar informação espacialmente delimitando-a em categorias faz da experiência de leitura algo que não requer nenhum esforço, uma ação totalmente passiva que, por outro lado, acaba com a linguagem.
Botando de lado o fatalismo, é também esse impulso que garante o sucesso de aplicativos como Letterboxd, Goodreads ou Last.fm. Localizados no ambiente muito específico que fica entre o aplicativo de notas e as grandes redes sociais, eles são uma forma de compartilhar apenas o bastante para que usuários exponham suas listas e opiniões sem interagir demais. Afinal, esses aplicativos não passam de catálogos das coisas que consumimos, organizando-as no tempo e espaço para que outras pessoas possam explorar nossas coleções e comparar com suas próprias. Quando tudo é público, a vertigem das listas não se relaciona mais apenas a uma vontade de lembrar, mas de fazer existir no nicho em que cada um se insere. Identificar-se – por isso, também, listas de veículos de cultura não vêm mais assinadas apenas pelo genérico “editorial”, queremos saber o que cada nome consumiu e o que isso diz sobre o autor (quem não adorou ver a lista de descobertas da Isabelle Huppert na Screen Slate?).
“O que a cultura quer? Tornar o infinito compreensível. Também quer criar ordem – não sempre, mas frequentemente. E como, enquanto seres humanos, se enfrenta o infinito? Como se tenta agarrar o incompreensível? Através de listas, catálogos, coleções, enciclopédias e dicionários.” A fala de Eco resume a ambição de cada aficionado cultural ao publicar sua própria lista de favoritos ao fim do ano. Nessa época, podemos nos ver em meio a um furacão de listas, mas, como o autor diz, quando nas mãos certas, o hábito pode se tornar uma “poética do catálogo”.
Sem essa ambição, compartilho as listas das minhas descobertas de leitura e cinema no decorrer do último ano, com alguns comentários. A minha lista de lançamentos do cinema já está na Revista Vertovina.
Melhores filmes
Travolta et moi (Patricia Mazuy, 1993)
Quando assisti a Travolta et moi, senti algo de extremamente íntimo que poucas vezes havia sentido antes no cinema. O filme é parte da série televisiva Tous les garçons et les filles de leur âge, que foi ao ar no canal francês Arte, em 1994. Em uma coleção fantástica que reune Chantal Akerman, Claire Denis e Olivier Assayas filmando suas experiências de juventude entre as décadas de 1960 e 1980, o filme de Patricia Mazuy se destaca por transformar a rebeldia juvenil em uma tragédia cantada pelas músicas do Bee Gees. Na simplicidade da sinopse, um sonho febril queima a juventude, que abre os olhos para encontrar um mundo que não tem nada das fantasias do cinema. Minha sessão dupla perfeita seria o par trágico de Embalos de sábado a noite e Travolta et moi.
Céline et Julie vont en bateau (Jacques Rivette, 1974)
Jeanne Dielman, 22, quai du Commerce, 1080 Bruxelles (Chantal Akerman, 1975)
A mulher de todos (Rogério Sganzerla, 1969)
Alphaville (Jean-Luc Godard, 1965)
Um dos clássicos de Godard que mais adiei assistir e que por isso me surpreendeu imensamente. Alphaville é muito diferente de todos os outros filmes da primeira fase do cineasta. Há algo de muito especial na linguagem que é proposta ali, nas brincadeiras com o dicionário, nos pequenos poemas que são sussurados por cima das imagens que recortam o amor de Anna Karina e Eddie Constantine em uma trama que hora abraça, hora foge da ficção científica e do cinema noir hollywoodianos. Um dos filmes em que o amor é filmado de forma mais poética e, como é constante em Godard, sem abandonar a política que o envolve.
Bringing up baby (Howard Hawks, 1938)
Deux Fois (Jackie Raynal, 1968)
L’enfer (Claude Chabrol, 1994)
L’amour fou (Jacques Rivette, 1969)
Vale Abraão (Manoel de Oliveira, 1993)
Undine (Christian Petzold, 2020)
Babilônia 2000 (Eduardo Coutinho, 2001)
As filhas do fogo (Walter Hugo Khouri, 1978)
Sois belle et tais toi (Delphine Seyrig, 1981)
Que honra foi ver um dos principais filmes do meu projeto de pesquisa no cinema. Me encantei pelo trabalho da Delphine Seyrig e da Carole Roussopoulos no coletivo Les Insoumuses logo antes do IMS anunciar a mostra dedicada à produção do arquivo que elas fundaram, junto com Ioana Wieder, em 1982, o Centro Audiovisual Simone de Beauvoir. Seyrig faz Sois belle et tais toi com uma urgência honesta de dar voz às suas colegas atrizes que experimentaram, entra França e Estados Unidos, o tratamento terrível de diretores de cinema. Ouvir Maria Schneider, Viva, Julie Berto e, sobretudo, Jane Fonda denunciando os cineastas mais famosos do século passado é esclarecedor. Pensar em como praticamente nada mudou e na importância do arquivo do Centro para pensarmos os direitos das mulheres dentro e fora das telas ainda hoje. Também adorei ver Maso et Miso vão de barco e É só não trepar!
Meio dia (Helena Solberg, 1969)
Assistido entre A Entrevista e From the Ashes: Nicaragua today, todos de Helena Solberg, os dez minutos de Meio-dia me deixaram sem reação. Uma rebelião infantil de tamanha violência é sonorizada pela versão de É proibido proibir, cantada por Caetano Veloso ao lado dos Mutantes durante o Festival da Música Popular de 1968. O cinema brasileiro tem uma quantidade imensa de filmes fantásticos que desafiam a ditadura e a censura, mas Meio-dia é um dos que fazem isso com maior força. Sou eternamente grata pelas digitalizações que a Cinelimite exibiu no decorrer do último ano, entre Cinemateca e IMS, que possibilitaram que o público de São Paulo conhecesse as obras de cineastas como Inês Castilho, Eunice Gutman e Helena Solberg.
Melhores livros
Seminário dos ratos, Lygia Fagundes Telles
Play it as it lays, Joan Didion
O primeiro livro que li esse ano e a única ficção da jornalista que me fez acreditar nessa profissão terrível até aqui. A ficção de Joan Didion é tão encantadora quanto seu trabalho de reportagem, e claramente tem grande inspiração nele, ao mesmo tempo em que reflete as vivências interiores da própria autora. Também me encanta a forma como Didion descreve os espaços em que seus personagens, sejam eles reais ou fictícios, se inserem. A cobra que ilustra a capa – uma das minhas artes de capas preferidas – é uma imagem recorrente entre os desertos dessa Califórnia que é muito diferente da Hollywood que as vedetes da década de 1940 construíram. Tema constante da obra de Didion, a decadência dessa América da década de 1960 transparece na forma como os seus personagens vivem a trama, em um limbo entre o estrelato de Los Angeles e a esterilidade perturbadora do deserto Mojave.
Still pictures, Janet Malcolm
Esbarrei por acaso no livro póstumo da jornalista Janet Malcolm na livraria da Bienal – e que sorte. Uma das autoras de não ficção mais fascinantes do século passado, em seu último livro, Malcolm foge da reportagem para falar de si mesma, em pequenos textos que exploram a relação entre memória e fotografia com uma sensibilidade e atenção cultura fantásticas (“All happy families are alike in the illusion of superiority their children touchingly harbor” – em referência cheia de humor à frase de Tolstoi em Anna Karênina). Minhas autoras preferidas são Sontag e Didion, e sinto que Malcolm é o meio termo perfeito entre a análise cultural da imagem que Sontag fez tão bem e a prosa jornalística pessoal que Didion dominou. Sobre a herança judaica e crescer enquanto imigrante na Nova York da década de 1940, além de explorações da memória que ninguém jamais colocou em palavras tão precisas: “The gold is dross. The glitter of memory may be no less deceptive. The past is a country that issues no visas. We can only enter ir illegally.” Uma autobiografia fantástica escrita por alguém que detesta autobiografias (“Autobiography is a misnamed genre; memory speaks only some of its lines”).
Fim de partida, Samuel Beckett
Bonjour tristesse, Françoise Sagan
La fin de la jalousie, Marcel Proust
Aos prantos no mercado, Michelle Zauner
Com uma sinceridade avassaladora, Michelle Zauner atravessa o luto em memórias que recontam o momento em que viu sua identidade escapando de si junto com a sua mãe, que sofria de um câncer. Para tentar se redimir da rebeldia da adolescência e se aproximar da mãe nos seus últimos meses, ela aposta na culinária coreana. Nas descrições de pratos como o tteokbokki, lê-se o esforço para eternizar aquele amor entre mãe e filha. Difícil de ler sem inundar as páginas com lágrimas, Aos prantos no mercado explora o processo de crescer e se perceber em relação aos pais com uma sensibilidade que é universal. Que honra enorme é ter esse livro autografado.
O processo, Franz Kafka
Parque industrial, Pagu
Lapvona, Ottessa Moshfegh
How to behave in a crowd, Camille Bordas
Constelações, Sinéad Gleeson
Latim em pó, Caetano W. Galindo
Este foi o ano em que me apaixonei pela palavra. Li como nunca e comecei a me encantar não só pela literatura, mas pela língua. Foi essa paixão que me levou a Latim em pó, uma viagem fantástica pelo português, por toda sua história e as questões que fazem dele a língua que falamos e escrevemos todos os dias. A prosa de Galindo é de uma fluidez que remete ao “passeio” do subtítulo, uma história leve que não deixa de tensionar quando é preciso pensar no papel da colonização nesse processo e em como vemos a evolução da língua hoje.
Passion simple, Annie Ernaux
My year of rest and relaxation, Ottessa Moshfegh